Marcos Clark. Tecnologia do Blogger.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Fascínio


Eu tenho um pai, ponto. Mas será mesmo que ele tem um filho? Existe uma fronteira entre ter um pai e ser um filho, um portal de seda, transparente, quase imperceptível.
Por anos preferi pôr em julgamento as atitudes daquele velho insensato. Minha infância interrompida, o alcoolismo destrutivo, as palavras sádicas, traumatizantes e mortais. Tudo o que me levou à inúmeras tentativas de suícidio social, temendo palavras acusadoras.
Aquele hálito etílico me isolava num casulo invisível, me mantendo afastado de tudo e de todos.
Dez nos se passaram e o casulo ainda existe. Ou existia.
Passei décadas de minha vida procurando algo em comum com aquele monstro que tanto tirou meu sono. Desejei a morte do bandido imaturo que roubara minha infância, meus sorrisos. Nada encontrava em comum, além dos traços finos, do cabelo nunca penteado e da paixão pela música. Nada mesmo.
Nunca dei ouvido aos pequenos sinais em nossas conversas, quase um monólogo que ele tanto interpretava. Sempre deixei escapar as pistas que me levaria à inevitável semelhança que ali existia.
Lhe negava atenção quase que por vingança. Mas era meu pai. Cedo ou tarde eu teria de perceber o quanto dele havia em mim. Mais do que eu esperava.
Seu martírio era por mim desprezado, suas lamentações nem me faziam eco, suas histórias imprecisas nunca fora de fato por mim ouvidas. Suas dicas de como eu deveria tocar minha bateria eram desprezadas. - cale à boca, você não sabe tocar - eu amaldiçoava baixinho.
Pouco sei sobre o passado do cara que hoje divide comigo o que mais perto posso chamar de lar, quase um estranho no ninho. Pouco sei sobre a juventude atordoada, sobre a velha guarda e seus amores de infância. Agora lamento.
Choro sobre seus discos a atenção que pouco garanti à alguém de tamanha importância na minha vida.
Hoje, no dia dos pais algo mágico ocorreu.
Sempre ignorei o dia dos pais desde a separação deles dois. Larguei tudo, sai de casa tentando esquecer a data, que de comemorativa pra mim nada era. Não fui longe. Me isolei na internet como faço desde então, preso em meus pensamentos, fui trazido de volta à realidade.
Ouvi as batidas. Um ritmo acelerado e constante, caloroso como um bom samba deveria ser, um vigor profissional.
Me apressei como um louco, pra expulsar seja lá quem tinha sentido a liberdade de invadir meu espaço e tomado minha bateria. Na realidade, seja lá quem estava tocando, simplesmente me fascinara. - É seu pai. - eu ouvi. - duvido, ele não sabe tocar. - e corri. Não acreditava em que meus olhos refletiam, era de fato meu pai. Não o senhor frustrado de 60 e poucos anos que conheço. Era outra pessoa. Podia ver revivido ali meu pai no auge dos anos 60, barba longa, cabelos compridos, aquela beleza estonteante que vira nas fotos de família. Aquele era um pai apaixonado, jovem músico, sambista despretensioso que amava o seu tempo e sonhava tanto quanto eu. Me reconheci imediatamente na figura daquele ardor. Percebi que quando jovem, ele era exatamente quem hoje eu sou. E tocava melhor, muito melhor.
Reconheci ali a paixão fugaz que minha mãe sentira no fatídico dia em que viu pela primeira vez aquele hippie despreocupado, com a barba por fazer, deitado vagabundo sob a árvore, cochilando sem camisa. - Me apaixonei de cara por aquele rebelde mulherengo que detestava trabalhar. - minha mãe romanceava. Até eu me apaixonei. - Era impossível pra época não se apaixonar por um cara confuso e charmoso como ele. Sim, ele era meu pai.
Aqui estou, em prantos sobre seus discos que nunca parei pra ouvir quando ele tentara pôr pra tocar e reconheço Chico, Caetano, Erasmo... Temos muito em comum, quase tudo.
Percebi que ele vê em mim sua juventude sob a árvore. Que vê em meu rock, o seu samba juvenil. E vejo nele, sem clichê algum, meu herói, meu bandido. Meu futuro incerto nas mãos do destino.
Só lhe peço hoje, meu amigo, que seja o que sempre tentou ser, nada mais que meu pai.
Feliz dia dos pais, eu te amo meu velho.

4 Comente aqui:

Anônimo disse...

Eu gostaria de escrever algo sobre o meu pai. Mas eu tenho tanto a dizer, e (muitas vezes) nada de bom, que todas as palavras parecem vazias.

Uuri disse...

eu me reconheci ai.
tantas vezes me privei de longas conversas sobre a vida de meu pai, pouco sabia sobre a juventude que ele tee de abandoanr para sustentar casa, ja que meu avô era o alcoolatra e mulherengo.
casara aos 40, e mesmo assim nao abandonou sua divversão, seu prazer.
ontem descobri que o quanto gosto de dançar, de musica erudita e de jovem guarda está no codigo genético e está ali, no cromossomo Y que herdei dele.
ontem, pra esconder uma lagrima, no abraço de dia dos pais fiz a minha piada; mas ele nao me largou quando eu quis fugir do abraço, e chorou admitindo pra mim e pra ele, o quanto ja erramos. e passamos a tarde admitindo o uqanto temos em ocmum, e o quanto de tempo ja perdemos.
conto mais outro dia...
agora preciso dormir.

bandathetime disse...

Nossa, me emocionei! me identifico em muitas dessas frases... Parabens.

Unknown disse...

Nossos velhos... Shakespeare fala que a melhor sala de aula está nos pés de alguém mais velho, a gente tem que aprender a escutá-los, o jovem acha que sabe tudo, quando qualquer um sabe mais que ele. Ótimo texto, incrível como todos os outros.

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